Nos tempos da faculdade, meados dos anos 80, eu fui morar numa kitnete com uns amigos estudantes em uma vila no bairro de Educandos que chamávamos de “Vila Miséria”. A vila, se ainda existe, fica na Boulevard Sá Peixoto, uma rua que dá embaixo da ponte que liga aquele bairro ao Centro, nos fundos de uma casa branca de alvenaria em que o dono mandou construir dez kitnetes, o último do lado esquerdo era o nosso. Lá a vida era muito boa, tínhamos tudo: um colchão, uma rede, um fogão de duas bocas com botija e uma quantidade enorme de livros, baganas e garrafas de bebida espalhados por todo lado.
Não andávamos sujos nem mal cuidados, mas não tínhamos muita preocupação com a aparência, nem com o modo de vestir; calça jeans, camiseta, tênis ou um sapato simples bastavam. A lavagem de roupas era coletiva no final de semana, mas não se achava necessário passá-las. Lavar louças e limpar a casa, aí sim era um problema, nunca ninguém tinha tempo ou “saco”. Quando não se estava na faculdade estudando, passava-se a maior parte do tempo no ócio criativo, lendo, escrevendo ou outras coisas.
Nosso “AP” tinha porta, porém não tinha tranca, ficava o tempo todo aberto, mais por amor do que por qualquer outra coisa: Aquela idéia de que amor e liberdade não carecem de limites, cercas, muros ou fronteiras. Quem ultrapassasse aquela porta passava por um “portal mágico” que levava ao desprendimento das coisas materiais e de pessoas, das vaidades e do orgulho pequeno burguês. Lembro que todos que passaram por aquela porta se tornaram cúmplices de momentos de muita felicidade. Quem chegou sem nada, ganhou o mundo; quem chegou triste, ficou alegre; quem chegou com ódio, se tornou amante; quem se achava, se perdeu; quem era sábio, aprendeu; quem buscava conhecimento, filosofou.
Muitas pessoas passaram pela Vila, pessoas que deixaram muitas saudades pela sua particular maneira de ser. Lembro do Cesar Wanderley, com aquela barba enorme e cabelos compridos, estudante de Comunicação, hoje presidente do Sindicato dos Jornalistas; do camarada Adenilton Pinto, o sarará lourinho dos olhos verdes, filho da dona Adelaide, atualmente no Conselho de Educação; do Carlos Araújo, apelido “seringueiro”, com seu espanhol aculturado, e agora assessor de comunicação do SESC; do guerrilheiro Adelcy, defensor do socialismo e da luta armada, mas que nunca atirou ou se filiou a algum partido, hoje defensor da paz mundial; do Carioca e do Sérgio, agentes da polícia civil, que adoravam pagode; do Guto “Baila”, bailarino que hoje dança nas melhores companhias do Brasil; e muitos outros que a lembrança ficará para breves oportunidades.
Só uma lembrança triste daqueles tempos. Quando senhores que se diziam defensores da liberdade e da igualdade, aproveitando-se da nossa ausência, entraram no nosso lar e levaram os bens mais preciosos que possuíamos: nossos livros. Não se trata aqui de defender a propriedade privada, mas o respeito. Os livros, como qualquer outra coisa que tínhamos, poderiam ser utilizados por quem precisasse, bastava solicitar, comunicar a sua necessidade, que estávamos prontos a atender.
Fui à casa do chefe dos canalhas para dizer que não precisavam fazer aquilo, bastava pedir os livros, mas que depois os devolvessem para que outros pudessem usufruir da leitura, e não levá-los para fazer parte da sua biblioteca particular - creio que para eles mais por vaidade do que por vontade de lê-los. Sabíamos que nas mãos dos canalhas os livros ficariam nas estantes entregues às traças. Fui agredido e mandado embora pela corja. Saí de lá convicto de que a Vila Miséria era o lugar mais feliz do mundo, o mais rico em amor, ternura e carinho, mas como diz a velha palavra de ordem “a luta continua, companheiro”.
* Zé Erê, comedor de Jaraqui
* Zé Erê, comedor de Jaraqui