Postagens populares

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A VILA MISÉRIA I

Nos tempos da faculdade, meados dos anos 80, eu fui morar numa kitnete com uns amigos estudantes em uma vila no bairro de Educandos que chamávamos de “Vila Miséria”. A vila, se ainda existe, fica na Boulevard Sá Peixoto, uma rua que dá embaixo da ponte que liga aquele bairro ao Centro, nos fundos de uma casa branca de alvenaria em que o dono mandou construir dez kitnetes, o último do lado esquerdo era o nosso. Lá a vida era muito boa, tínhamos tudo: um colchão, uma rede, um fogão de duas bocas com botija e uma quantidade enorme de livros, baganas e garrafas de bebida espalhados por todo lado.   
Não andávamos sujos nem mal cuidados, mas não tínhamos muita preocupação com a aparência, nem com o modo de vestir; calça jeans, camiseta, tênis ou um sapato simples bastavam. A lavagem de roupas era coletiva no final de semana, mas não se achava necessário passá-las. Lavar louças e limpar a casa, aí sim era um problema, nunca ninguém tinha tempo ou “saco”. Quando não se estava na faculdade estudando, passava-se a maior parte do tempo no ócio criativo, lendo, escrevendo ou outras coisas.
Nosso “AP” tinha porta, porém não tinha tranca, ficava o tempo todo aberto, mais por amor do que por qualquer outra coisa: Aquela idéia de que amor e liberdade não carecem de limites, cercas, muros ou fronteiras. Quem ultrapassasse aquela porta passava por um “portal mágico” que levava ao desprendimento das coisas materiais e de pessoas, das vaidades e do orgulho pequeno burguês. Lembro que todos que passaram por aquela porta se tornaram cúmplices de momentos de muita felicidade. Quem chegou sem nada, ganhou o mundo; quem chegou triste, ficou alegre; quem chegou com ódio, se tornou amante; quem se achava, se perdeu; quem era sábio, aprendeu; quem buscava conhecimento, filosofou.
Muitas pessoas passaram pela Vila, pessoas que deixaram muitas saudades pela sua particular maneira de ser. Lembro do Cesar Wanderley, com aquela barba enorme e cabelos compridos, estudante de Comunicação, hoje presidente do Sindicato dos Jornalistas; do camarada Adenilton Pinto, o sarará lourinho dos olhos verdes, filho da dona Adelaide, atualmente no Conselho de Educação; do Carlos Araújo, apelido “seringueiro”, com seu espanhol aculturado, e agora assessor de comunicação do SESC; do guerrilheiro Adelcy, defensor do socialismo e da luta armada, mas que nunca atirou ou se filiou a algum partido, hoje defensor da paz mundial; do Carioca e do Sérgio, agentes da polícia civil, que adoravam pagode; do Guto “Baila”, bailarino que hoje dança nas melhores companhias do Brasil; e muitos outros que a lembrança ficará para breves oportunidades.
Só uma lembrança triste daqueles tempos. Quando senhores que se diziam defensores da liberdade e da igualdade, aproveitando-se da nossa ausência, entraram no nosso lar e levaram os bens mais preciosos que possuíamos: nossos livros. Não se trata aqui de defender a propriedade privada, mas o respeito. Os livros, como qualquer outra coisa que tínhamos, poderiam ser utilizados por quem precisasse, bastava solicitar, comunicar a sua necessidade, que estávamos prontos a atender.
Fui à casa do chefe dos canalhas para dizer que não precisavam fazer aquilo, bastava pedir os livros, mas que depois os devolvessem para que outros pudessem usufruir da leitura, e não levá-los para fazer parte da sua biblioteca particular - creio que para eles mais por vaidade do que por vontade de lê-los. Sabíamos que nas mãos dos canalhas os livros ficariam nas estantes entregues às traças. Fui agredido e mandado embora pela corja. Saí de lá convicto de que a Vila Miséria era o lugar mais feliz do mundo, o mais rico em amor, ternura e carinho, mas como diz a velha palavra de ordem “a luta continua, companheiro”.
* Zé Erê, comedor de Jaraqui

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

LEITURAS E LEITURAS*

Ler Melhora as pessoas? Há quem não dê garantia absoluta. A filósofa alemã Hannah Arendt já disse (A Vida do Espírito) que leitores refinados estiveram no comando de muitos campos de concentração nazistas. O argentino Alberto Manguel lembra do professor que o instigou a ser escritor, mas se revelou um dedo-duro da ditadura argentina. Ler é uma possibilidade de abertura às experiências que ainda não vivemos na pele. Em si, nem sempre nos melhora. Pois o que faremos com ela é da nossa alçada.

Hoje já se sabe que não há leitura “certa” ou “errada”, há gradações. Um texto pode ganhar significações nem sempre previstas pelo autor. Pois circula, é lido em contextos e épocas distintos. Já é hegemônica (está nos Parâmetros Curriculares, de 1998) a idéia da leitura como fruição e do leitor como construtor de sentidos do texto. A leitura pressupõe cruzamento de saberes e experiências do leitor com saberes propostos pelo texto, como disse Ingedore Koch, da Unicamp. Todo texto traz coisas implícitas. Como se chega ao que está oculto nele? Ligando o que está no texto ao nosso saber prévio, diz Ingedore. O leitor com pouco conhecimento fará leitura mais rasa. Se sua experiência de vida e de leitura for maior, mais a fundo ele chega. O drama atual é levar essa noção a suas conseqüências: as ações cotidianas devem realizar na prática a idéia de leitura como interação – ler para entender o mundo, não a intenção de um autor. Muita gente admite que o leitor não é um ser isolado do mundo. Elogia a leitura que enfatiza a fruição. Mas, no vamovê, limita-se a exigir do leitor o projeto de escrita proposto pelo autor. Ou tenta controlar o que ele lê.

A leitura, ato solitário que requer concentração, feita hoje numa sociedade da distração, em que a irreflexão e a precipitação de juízos dominam. Parar para pensar e para ler dá trabalho (Platão: pensar é o diálogo silencioso de si consigo mesmo). Ler pode nos melhorar, mas antes exige esforço de querer parar para pensar. Esforço genuíno de liberdade.

*Adaptado de: Luiz Costa Pereira Junior, editor. Revista Língua Portuguesa, Ed. Segmento, Ano 5 – Nº. 63, São Paulo, janeiro de 2011.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O MACACO DE IMITAÇÃO

Era um tempo em que não havia internet, portanto, não poderia haver também sites de relacionamentos para as pessoas exporem “seus” pensamentos, “sua” maneira de ser. Por isso, quando alguém queria copiar ou imitar uma pessoa, uma idéia ou qualquer outra coisa aqui em Manaus, só poderia através das informações dos jornais, dos livros, da TV ou observando o jeito de se vestir, de falar ou de se comportar de alguém. Então, quando se percebia, claramente, que era uma imitação descarada, se dizia “é um macaco de imitação”. E quando se queria “passar um trote”, usava-se o telefone convencional, se passando por..., imitando a voz de..., e por aí vai.
Hoje vivesse a era da cópia, da fotocópia, do plágio, da pirataria, da imitação barata, que acabam com os direitos autorais. Mas não se trata aqui de se discutir esta questão, mas observar o que aconteceu ontem numa escola particular da Zona Oeste desta cidade, que mobilizou ontem um grupo de elite das tropas da Polícia Militar a monitorar a entrada dos alunos. Aconteceu que uma ameaça – via internet - supostamente feita por um aluno de treze anos, fã das páginas de conteúdo nazista num site de relacionamento, faria um atentado na escola, causou pânico entre os pais dos alunos. Supõe-se que a ameaça veio de outro site de relacionamento: um outro aluno criou um falso perfil e espalhou esse boato.
Mil desculpas a espécie dos macacos por esta analogia com a imitação da espécie homem. O homem é que é responsável pela criação do “macaco de imitação”. Tudo começou nos circos, quando se vestia os macacos com roupas e os faziam se comportar como se fossem humanos, tudo para fomentar o riso dos espectadores. Mal sabem que acham graça de si mesmos. Nós somos os verdadeiros “macacos de imitação”; vivemos imitando uns aos outros.
Fatos recentes de chacinas em escolas acontecidos em outros lugares do mundo chegam à velocidade das informações via satélite, vapt-vupt. Por isso, deve-se tomar todo cuidado com os loucos imitadores de outros loucos, que podem realmente cometer atentados terrorista; como, também, repudiar o “trote” via internet, que pode refletir infantilidade no caso de um menino de 13 anos; e, se maior de idade, que pena, falta amadurecimento.
Na vida real o “macaco de imitação”, no cinema o “Planeta dos Macacos: A Origem”. No cinema, um cientista trabalha em um laboratório, onde são realizados experiências com macacos. Ele está interessado em descobrir novos medicamentos para a cura do mal de Alzheimer, já que seu pai sofre da doença. Ao seu lado conta com a ajuda de uma especialista em primatas. As experiências realizadas fazem com que a inteligência dos macacos aumente bastante, ao ponto deles escaparem de suas gaiolas e enfrentarem os humanos pelo controle da Terra. Quem está imitando quem nessa história? O que constata a inteligência: a fuga da gaiola ou o enfrentamento dos humanos pelo controle da Terra? Parece piada, estamos sempre nos enfrentando, controlando e destruindo o planeta, mas continuamos fazendo de conta que não é problema nosso. Como dizia o personagem “macaco” num antigo programa de televisão o “viva o gordo”: o culpado sempre é o macaco.
A pergunta que fica é: quando vamos dar sinal de inteligência, quando vamos sair da nossa gaiola, não para nos enfrentarmos e controlar a Terra, mas para compartilhar, amar e respeitar nosso semelhante?

João Pinheiro Neto é filho de dona Etelvina